quinta-feira, junho 28, 2012

Neste percurso, fica nítido que as Utopias não são apenas devaneios de mentes ociosas, mas construções imaginárias arquitetadas a partir dos contextos históricos reais, das vidas e relações sócio-históricas de indivíduos concretos de carne e osso.


RESENHA
Histórias de países imaginários


Histórias de países imaginários: variedades dos lugares utópicos, organizado por Marcos Antônio Lopes (Doutor em História pela USP e docente na Universidade Estadual de Londrina – UEL) e Renato Moscateli (Doutor em Filosofia Política pela UNICAMP e Pós-Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Goiás – UFG), apresenta uma rica exposição sobre os sonhos e esperanças de mundos ideais imaginados pelas mentes férteis dos filósofos e escritores ficcionistas. São os arquitetos de cidades construídas em ilhas e lugares imaginários, projetos utópicos de regeneração social orientados pelo ideal da perfeição e harmonia humana.

A obra é composta por dez capítulos, escritos por historiadores – na maioria – e docentes do campo filosófico. São eles/as: Célia Maria Borges (UFJF), Estevão Chaves de Rezende Martins (UnB), Fábio Duarte Joly (UFRB), João Antonio de Paulo (UFMG), José Costa D’Assunção Barros (UFRRJ), Márcia Siqueira de Carvalho (UEL), Marcos Antonio Lopes (UEL), Marcos Lobato Martins (UNIFAL) e Renato Moscateli (UFG). O objetivo, nas palavras dos organizadores,

    “foi o de oferecer um mapa histórico para aqueles que desejarem conhecer a geografia de alguns dos países imaginários que vêm sendo concebidos desde a Antiguidade clássica, países cujos territórios foram delineados pela ficção, mas que nem por isto se desligaram da assim chamada realidade concreta” (p. 7).

Os autores expõem e analisam o pensamento utópico dos gregos e romanos antigos aos sonhos e esperanças que mobilizaram os jovens na década de 1960, num trajeto que inclui as utopias renascentistas, o espírito profético que sacudiu a Europa moderna, o iluminismo, o ideal socialista científico, a utopia dos prazeres dos socialistas utópicos e as manifestações utópicas na ficção científica.

Neste percurso, fica nítido que as Utopias não são apenas devaneios de mentes ociosas, mas construções imaginárias arquitetadas a partir dos contextos históricos reais, das vidas e relações sócio-históricas de indivíduos concretos de carne e osso.

As Utopias são respostas criativas às desventuras e dilemas da existência humana em cada época histórica. Da Antiguidade clássica à modernidade, os homens e mulheres rebelam-se contra a realidade angustiante e anseiam por um outro mundo no qual os sofrimentos, a desigualdade e opressão social sejam superados. Estes mundos imaginários tanto podem representar o regresso a um passado idílico quanto o salto para um futuro, um vir-a-ser que habita os corações e as mentes dos homens e mulheres do tempo presente.


As Utopias são elaboradas a partir das diversas fontes que nutrem a imaginação humana. Inspiradas pela fé religiosa, elas adquirem contornos proféticos que estimulam a construção do Reino de Deus aqui na terra, mas também podem ser conformistas na espera do paraíso após a morte. A razão, a ciência, a situação política e social, também inspiram a construção das Utopias. Em qualquer dos sentidos, elas negam o real existente e afirmam a esperança de que um outro mundo é possível.

O pensamento utópico não está imune às críticas. Não obstante, os arquitetos de sonhos e esperanças lançam os alicerces de construções imaginárias no solo da realidade existente e encontram nos indivíduos reais as potencialidades da sua materialização. As Utopias são construções mentais de indivíduos em condições sócio-econômicas de pensá-las. Mas o sonho e a esperança não são propriedades de ninguém em particular. Por mais miserável que seja a condição humana, é possível sonhar. É a resposta ao desejo humano da justiça, igualdade e um mundo melhor. Quando as Utopias são assimiladas e tornam-se o móbil profético ou ideológico, elas alimentam os anseios de transformação social. Ao serem materializadas pela ação humana, influenciam e mobilizam multidões.

A leitura de Histórias de países imaginários permite a reflexão crítica sobre Utopias e as formas que elas assumem nas diversas épocas históricas. Por mais que o humano busque a perfeição e arquitete modelos de mundos perfeitos, ele não está desvinculado da realidade imperfeita e, sobretudo, é um ser imperfeito. Assim, não surpreende que os mundos arquitetados incorporem ideais de eugenia social, mantenham hierarquias e formas execráveis de relações sociais.

As Utopias podem gerar o oposto do ideal proposto. Por mais que sintetizem a esperança de realizar os sonhos mais generosos, as construções idealizadas são mediadas pela práxis humana. As Utopias podem se revelar intolerantes, autoritárias e gerar realidades sociais opressivas.

Na medida em que seguimos os autores nesta viagem por lugares utópicos e países imaginários, é-nos possível avaliar criticamente as potencialidades e limites das Utopias. Estas nos remetem às águas sombrias das distopias tão bem expressas por autores como George Orwell em A revolução dos bichos e 1984. Eis um dos méritos deste livro.

Os arquitetos de Utopias também podem se revelar demolidores de sonhos e esperanças. De qualquer forma, a realidade social, política e econômica, nos diferentes contextos históricos, fertiliza o solo em que germinam novos sonhos e utopias. A esperança se renova. Mas, sem ilusões! Mesmo que as Utopias nos remetam a mundos imaginários, é salutar manter a razão, o pé no chão da realidade social e não perder de vista o humano demasiado humano.

A leitura de Histórias de países imaginários: variedades dos lugares utópicos contribui para a compreensão dos diferentes significados que as Utopias historicamente assumem (proféticas, científicas, políticas e sociais, etc.). Por outro lado, a obra resgata um tema que, a despeito da desesperança de muitos, permanece atual. Afinal, o ser humano é um ser imaginativo, desejante e capaz de pensar a vida para além da sua existência. As Utopias são necessárias, bem como o entendimento delas. Vale a pena ler, sonhar e manter a esperança.

    LOPES, Marcos Antônio; MOSCATELI, Renato. (Orgs.) Histórias de países imaginários: variedades dos lugares utópicos. Londrina: EDUEL, 2011 (172 p.)*
    * Publicado originalmente na REA, nº 133, junho de 2012.

quarta-feira, junho 27, 2012

O mundo não tem sentido, apenas existe. Uma maçã é 1 maçã, sem dúvida! Cada mordida é um novo saber. Mas, se “uma rosa é uma rosa é uma rosa...”




Pequeno Ensaio Literário sobre Poemas Filosóficos[1]






Will Goya
[Gilles Deleuze]






O mundo está escrito, ou por escrever. Enquanto pensamos, somos todos prisioneiros da linguagem, e apenas livres para nos expressar através dela. Além disso, nem um só pensamento, nada pode ser dito. Até a morte, a recusa... e o silêncio proposital nos instruem, comunicam suas intenções. Entretanto, se há quem expresse apenas seu dogma, seu eu e sua solidão, há quem deseje o diálogo, todas as formas de “escuta”, de respeito e proximidade. Quem prefere a escrita, a literatura, faz da liberdade uma palavra, um jogo de entendimentos entre signos e sintaxes, e está obrigado a nela pôr um significado para o leitor através de muitas outras palavras; obrigado a encontrar na gramática, na semântica, em toda a cultura, o que só os cultos entenderão. A palavra escrita só encontra sentido quando se casa consigo mesma. O mundo não tem sentido, apenas existe. Uma maçã é 1 maçã, sem dúvida! Cada mordida é um novo saber. Mas, se “uma rosa é uma rosa é uma rosa...”[2] – como dizia Gertrude Stein –, então o que seria o conceito universal de “a maçã”? Ou, se a palavra se refere à coisa, a quais exatos objetos se referem os termos “sarcasmo”, “filantropia”, ou o verbo “estabelecer”?



Alguns pensam: “é fácil falar de mim, difícil é ser eu”. Ledo engano, para-choque de caminhão. Quem teria a facilidade de Vinícius de Morais para saber descrever uma das experiências mais básicas e conhecidas de cada um de nós, como revela o título do seu famoso poema “Da Solidão”? Quem saberia falar a verdade sobre as próprias mentiras? Sobre contradições, sutilezas, fragmentos, memórias de cheiro, fantasias... sobre os desejos ocultos do corpo e outros tantos mistérios de si mesmo? Depois, parecem ser naturais termos ideias e emoções confusas, distantes e mal combinadas entre o que pensamos, o que sentimos e o que de fato somos e fazemos de nós mesmos. Haveria sensibilidade e conhecimentos de linguagem suficientes? As palavras das delicadezas, das coisas e movimentos, os termos das grandes aprendizagens... enfim, tudo o que é pronunciado na vida só é compreendido se explicadas suas complexas e belas estruturas linguísticas. Um poema não existe apenas, tem sentido. É uma competência. Não é, pois, correto dizer que um olhar sempre vale mais que mil palavras; dizer que as palavras são pobres e a boca pode menos que os olhos. Acreditar nisso é nunca ter lido, por exemplo, Paul Valéry, André Gide, José Saramago ou Kalil Gibran. É também só “ter ouvido falar” de filósofos como Aldous Huxley, Bachelard, Sartre ou Camus. Não haveria o nosso mundo conhecido, não houvesse literatura. Em que pese a isso, sempre haverá mais coisas que palavras, mais mistérios e mais desentendimentos. Dizer que as palavras são inúteis quando o olhar não diz nada poria fim ao imenso valor do diálogo. Em geral, quanto maior o silêncio, mais a ansiedade se acumula de interpretações e perigos; quanto mais firmes verdades o olhar carrega menos se escutam as palavras contrárias, calando a relação. Não raramente, problemas de diálogo se resolvem com mais diálogo. Se for verdade muitas vezes que um olhar diz mais que mil palavras, igualmente, que se aprenda com as palavras de Guimarães Rosa a se ter outros mil olhares sobre a vida e o mundo, e saber ler com os olhos dos outros. Quem saberia ver – além de meras terras secas – as belezas, o espírito e a tragédia do Grande Sertão brasileiro sem as palavras de Rosa? Afinal, “o sertão está em toda parte...”[3]. Guimarães é exemplo vivo de um escritor cujas palavras têm o poder de dar vida a um ser, a um drama interior comum a todos nós, na medida em que as reflexões do personagem são capazes de dar ao leitor um novo olhar. Parece-me impossível ler Guimarães Rosa, com um interesse de alma, e em nada se modificar depois da leitura. As palavras também dizem mais que mil olhares. Quem souber todas as letras, fonemas, propósitos e pontuações, que veja.



Quando filosofia é literatura, a verdade é a trama da palavra, toda sua força, seu impacto, seu temor. Logos, a verdade, e tudo o que se diz ou se quer dizer reclamam intimidades vivas com a língua. É história. Verdade é um diálogo inacabado. Se a palavra está definitivamente posta, impressa, sem conserto, ainda assim nada está perdido. Sempre haveremos de dialogar com o texto. Nem o próprio autor se pertence escrito, exclusivamente. Sua língua é de todos. Não há autor sem coautoria; texto sem contexto. Muitas vezes, quando nos falta o léxico, é a palavra não-dita, articulada e negada, que mais bem preenche o sentido, o enunciado da frase. São os gestos e termos da vida. Propositadamente, e não raro, a literatura é assim. Por que a verdade haveria de ser diferente na filosofia se a vida é a mesma? Sem dúvida, a literatura decifra mais ideias, concebe mais realidades do que a filosofia é capaz, pois somente a arte consegue ser coerente com a vida sem deixar de ser contraditória. O que é verdade literal nunca é literatura.



Então, onde está o sentido de verdade da palavra escrita por outra pessoa? Em nenhum lugar, se não houver leitor. Não se faz uma prece repetindo a oração. O poeta sente seus pensamentos, e quando deseja pensar em dizê-los, sonha com palavras escritas. Embora as palavras sejam comuns a todos, cada um as mastiga com um sabor próprio. Como se pode alimentar de poesia a palavra de quem lê, se os significados da sensibilidade só foram escritos graças à estranha força da intimidade única de outra experiência pessoal? Escrever um poema é tirar da boca a fome de quem se admira das coisas absolutamente comuns, das emoções que atravessam como um rio profundo um dia simples, completamente natural, mexendo os detalhes da existência... e depois de tudo o que se acumula, de toda a solidão que não pode ser dita, angústia ou felicidade, deixar o leitor sozinho diante do poema. Poetas e filósofos procuram nos livros o que encontram nas pessoas, mas com uma virtude bastante incomum: sabem que grandes almas podem estar em vários lugares ao mesmo tempo, em outras épocas, e habitar diferentes corpos, diferentes livros. Estamos mal acostumados a pensar que encontramos alguém só porque lhe vemos a pele com recheios. Um livro é um corpo habitado por uma alma, ou mais; é um corpo tatuado de pensamentos. Há os que vivem cada palavra que dizem, mas preferem se relacionar por escrito; e assim o que têm de mais íntimo, de mais profundo e verdadeiro, talvez ainda viva e dialogue por séculos, com milhares de pessoas, uma a uma.



A literatura será filosofia, penso, se alguma mágica competência, talento reconhecível, mas de todo inexplicável, levar o leitor a transformar seus vocabulários em conceito, palavras em ideias; a condensar intuições, vivências abstratas, instintos, desejos e emoções contidos no texto para identificar, descrever e, quem sabe até explicar a realidade das experiências dramáticas da vida. Isso, para dar sentido, movimento e resolução, chegada a hora em que o leitor, perante suas escolhas, seja ele próprio o autor da resposta: “o que fazer?” A arte não imita a vida, é em si mesma uma das mais belas formas de experimentá-la. Não copia o que acontece ou o que poderia ter acontecido, mas ensina a viver e amadurecer em perspectivas desconhecidamente alheias. Quando alguém se abandona aos sentimentos da leitura – romance, conto, crônica ou poema – pelas dificuldades que encerram ou que constituem a luta emocional de assumir por um momento como seus os sentimentos e as opiniões dos outros, personagens e autores, esse alguém, já não mais referência para si mesmo, e tendo eleito um não-eu para estar no mundo e conduzir seus sonhos, além de superar o egoísmo moral, agiganta-se ao tornar-se coautor intelectual da imaginação, fazendo de seu não-eu um eu melhor. Não há um texto literário cujo fim não seja o mesmo: o leitor. Filosoficamente, entender o outro é pensar por si próprio e reconhecer as diferenças. É fazer ser outro depois da leitura; fazer da leitura uma vivência dramaticamente real, e de cada livro uma nova vida. Essa é a ponte mágica entre o que cada um é capaz de ler e a universalidade escrita da experiência filosófica e literária, e pode levar a filosofia e a literatura a, razão do que têm em comum, por isso, se confundirem.



Sim! A literatura pode ser, entrelinhas, filosofia. Entrelinhas são pensamentos, interpretações de quem lê. Mas, de qual autoria? A quem pertence, originalmente, a ideia subentendida? Quanto maior for a cultura literária, menos títulos e mais autorias; quanto maior a inteligência filosófica, mais humildade e diálogos. O que sei é que o espaço “entrelinhas”, de uma boa literatura, não é o que separa, mas o lugar onde o leitor pode se encontrar com os dramas de sua época, e com os próprios, com as afinidades e dessemelhanças para com o escritor (mesmo seja este os dois) discutindo autorias... Há críticos que dizem nada poder se falar DO texto que não esteja NO texto, que não há entrelinhas. Teóricos da objetividade, fiéis ao método e adeptos das análises intrínsecas, podem e devem garantir um conhecimento rigoroso – o que não é pouco. Mas, se a tradução exata de uma língua para outra, palavra por palavra, quase sempre trai a verdadeira mensagem, aquilo que não está diretamente expresso num texto, num tempo e lugar, deve ser cuidadosamente lido, transcrito e versado para sua nova circunstância, com naturais perdas e vantagens. Assim, quando um leitor substitui a unidade da palavra pelo conceito do léxico, ele descobre a ideia escondida, tal se como a literatura fosse um mapa, a verdade um tesouro e, entre linhas, talvez, o legado de alguma filosofia. Entre linhas existe a herança cultural da obra e o leitor, coautores. Lugar em que não se caminha com segurança, talvez um dos mais honestos momentos escritos da vida em que a literatura e a filosofia deixam à imaginação, aos perigos e delícias da liberdade. Quem saiba fazer literatura e filosofia ao mesmo tempo há de tentar ensinar verdades ocultando-as com palavras, atrás dos símbolos, substituindo a pedagogia da gramática pelos jogos de linguagem, a fim de que o leitor as encontre em seu próprio pensamento, reagindo. A lógica pode menos do que a realidade afirma.



Os clássicos foram tesouros da humanidade revelados. Os grandes espíritos dialogam com o futuro, ocultando-se no porvir uma parte essencial de suas ideias, conceitos da vida muito bem refletidos e elaborados, com justificativas cuidadosamente analisadas e postas em personagens, “falas” e “imagens”, cenários da imaginação. Como não perceber que elas adquirem um sentido antes filosoficamente preparado? Esses gigantes não só conhecem a humanidade como também a inventam, criam novos valores, decifram realidades humanas, abrem ou preparam caminhos na ética, na ontologia, na política, nas dialéticas da racionalidade e em outros. Após ler Água Viva, Fausto, O Alienista, A Metamorfose, o Livro do Desassossego, é de todo impossível negar a existência de uma autêntica filosofia de Clarice Lispector, de Goethe, de Machado de Assis, de Kafka e de Fernando Pessoa.



Há quem diga que não se faz filosofia em versos, nem o inverso; e que a poesia não é verdadeira, apenas bela (ou não). Prosa. Junto à poesia e à filosofia, no interior do poema e da tese, há fronteiras que precisam muitas vezes ser cruzadas para se vencer a crise generalizada dos enunciados e das narrativas, ou nada se descobrirá das belas tensões em que se constroem os discursos, as verdades e o sentido.



Um texto filosófico se dirige ao leitor para convencê-lo, persuadi-lo a filosofar, a criar ideias próprias. A ideia, ao servir-se de palavras para se exprimir, contorna, define e traduz um significado, e o nomina “conceito”. Quando desejo, estou subsidiariamente a pensar. Capacidade de escolha em foco, carregada de apetites, apelos físicos, psicológicos ou morais. O impulso de natureza emotiva ou desejante é ele próprio um pensamento deliberado, que conduz a atividade mental para dar sentido a um objeto como ideia. Embora nem toda ideia seja emotiva, quase todas as emoções são pensamentos intencionais, com a única exceção, talvez, dos sentimentos místicos sem desejos, como a paz da meditação – metafísica do inefável. Dessa forma, considerando que a raiz das nossas emoções é feita de ideias, isto é, que significam algo para nós, nada mais lúcido seja a filosofia bússola das nossas emoções, ensinando a sentir inteligentemente. Porque toda grande obra literária é uma profunda aula sobre a força dos desejos e as consequências existenciais das nossas escolhas, nada mais verdadeiro concluir que um clássico da literatura nos provoque  estudar pelo menos um clássico da filosofia. Se a filosofia emancipa o pensamento, não raro a literatura antecipa novas ideias, na fonte viva da criação. Entre elas, qual é a primeira, a mais importante ou mais original? Sinceramente, eu próprio não calculo anterioridades ou metafísicas da hipótese. Quando elas resolvem se casar ninguém mais pode definir até onde, como e quando uma existe sem a outra.



Sei que literatura e filosofia são coisas absolutamente distintas, no modo cartesiano, pois na literatura pode-se inventar e na filosofia tudo exige fundamentos para existir. Mas nem tudo é Descartes. Também é verdade que Platão faz Sócrates refutar o seu detrator, o grande Aristófanes, e com ele toda a tradição grega, pondo fim à antiga literatura, à retórica, à poética, ao mito como base de explicação, propondo uma nova forma de pensar, falar e agir. Todavia, como negar, por exemplo, que o Fédon e O Banquete possuem em seus argumentos o estilo e a mais bela linguagem poética de sua época? A filosofia não negou a literatura, incorporou-a.



Se, de um lado a literatura é um discurso feito para despertar intensos sentimentos, a filosofia é o estudo da linguagem do pensamento, e mais. A filosofia deve subordinar os sentimentos a um raciocínio, mas seria a emoção ou a razão, a literatura ou a filosofia, ou ambos, o que melhor capta o conceito de uma ideia? A resposta é individual, porque a vida também o é. Ninguém há de saber, nem de sentir pelo outro. No entanto, todo esse esforço de comunicar ao leitor a perspectiva de uma nova ideia sobre o mundo é pura linguagem. Muito arquitetural, a linguagem é uma inadaptação à realidade do instantâneo, do absolutamente simples e ingênuo. Um ligeiro “oi!” não está isento de significações secundárias, de interpretação e contextualização linguística, de deciframento existencial e filosófico. Análise feita, descoberta a intencionalidade oculta, pode querer dizer: “eu me sinto muito só, quero sua companhia, pois não sei mais o que é a minha vida... Preciso da sua ajuda!” Posso subverter a sintaxe, em aparente anarquia, reinventar o texto, o estilo, a estética e outros. Posso até reinventar a literatura...



Mas que filosofia honestamente conseguiria tocar a realidade inteira de um conceito vital com o uso exclusivo da razão pura? A filosofia não tem sequer essa pretensão, diria o filósofo alemão Kant. Vivesse mais dois séculos de uma civilização iluminista, ele teria percebido que a Razão aproximou-se do seu limite e entrou em crise. E vendo o trágico diagnóstico da perda da possibilidade de um compromisso possível de nossas orientações fundamentais para a vida, entenderia que a autoridade da razão deve ser recuperada na historicidade do sentido, isto é, que a tarefa de autocompreensão só tem êxito quando o homem se vê culturalmente, como participante e intérprete da tradição histórica. Filosofia é linguagem, é língua, é história. Se eu quiser compreender um pensamento, um texto, ou a universalidade da experiência humana, devo aceitar a hermenêutica como filosofia prática. A hermenêutica possibilita reconstituir uma comunicação confusa; ela atinge, fere e revela os limites que separam a razão metódica dos dramas da vida. Conquanto a filosofia analítica busque na linguagem do texto a unidade do significado, a hermenêutica filosófica trabalha com o sentido histórico; e ambas estão inseparavelmente certas, porque ao mesmo tempo em que a linguagem “quer dizer”, isto é, tem função semântica, ela também “é”, ou seja, é uma organização com concretude própria. Se algo puder ser compreendido será pela linguagem.



Logo, não só é possível uma filosofia poética, uma razão interessada e emotiva, como também é necessária. Mas, seria igualmente possível a existência de um poema filosófico? O poema não pensa a realidade como se de um lado houvessem palavras intencionadas e do outro o mundo real a que elas se referem, em nome da verdade. A palavra poética não é uma cópia sonora, desenhada, do real. O poema é a realidade mesma com todas as nossas faculdades psíquicas e espirituais, e até com nossos corpos. A arte da poesia não representa nada, ela é como uma canção que se define antes pela emoção da voz do que pela letra, seja qual for. O significado de um poema está em saber viver, amar e sofrer quaisquer dramas com aquela profundidade que só a beleza alcança. Que ninguém ouse dizer “poemas são só palavras!”. Porque a indiferença descolore a vida, a poesia salva o mundo.



O conhecimento agencia do interior a função da vida: uma ideia só existe para aquele que a vivencia. Uma ideia só existe como um fato. A vida é a base para pensar, logo, o conhecer a ela se subordina. Concordar ou discordar já é um engajamento, um compromisso, uma transformação e não um princípio teórico puro. Enquanto eu próprio não experimentar o sentido que entrego à notícia de que 2+2 = 4, isto pra mim ainda não será um fato, será apenas um desenho ou mancha sobre o papel, sem valor, tal como um cão que ao livro só fareja em busca de comida, mesmo que lá houvesse escrito onde se encontra enterrado o osso. O conceito de número é um “número vivido”. Quando significativos, cada palavra, vírgula ou verso, são, de fato, uma respiração. O poema é um fato, pura realidade. Logo, o poema não dá sentido ao mundo, ele é uma das expressões significativas do mundo. Quem cria novos significados para o amor através da poesia eleva o que se pensava e se sentia a respeito e, assim, evolui a pouca ou insuficiente maneira de antes amar. O grande poeta transfaz a antiga realidade moral criando um novo valor e conceito ético, quem sabe um comportamento. Faz o que pretende toda filosofia moral. O melhor da poesia não nos eleva para outro mundo melhor, antes e simplesmente prova o quanto o mundo – do qual os poetas pertencem – neles evoluiu.



A poesia é superior e anterior à lógica. Disse superior, não melhor. Enquanto houver filosofia, muito há que se discutir, proclamar, defender e negar, porque injustiças, e afins, sempre existirão. Todavia, não há raciocínio que alcance as janelas dos sonhos – de uma a outra – por onde todos nós nos unimos ao céu, morada comum. Se a humanidade não criasse o diálogo e, por meio dele, a literatura, não teríamos aprendido as racionalidades da filosofia. Desde as primeiras literaturas, histórias, religiões e fábulas de mitos, foi pela linguagem poética que a palavra, pouco a pouco, legitimou a realidade do humano e se tornou propriedade pública, ser do interesse político, do bem e da verdade. Do Oriente ao Ocidente, a história da inteligência deve à poesia. Além disso, a matéria da filosofia é a mesma da poesia: o espanto da criação de um significado, o estranhamento do óbvio. Quando se escreve um novo significado para existência – seja pela literatura, adornando sentimentos e motivações vitais para o ser; seja pela filosofia, reinventando conclusões, análises e perspectivas – aprende-se a transformar impulso em direção, linguagem em necessidade. Criar é especificar e promover as diferenças entre o antes e o depois. Aquele que é exatamente o mesmo após ler ou escrever nada fez se não do tempo a medida do próprio cansaço. Uma vida é pouco se repetitiva, e não haverá outra vida para quem não souber se recriar, ainda que reencarne mil vezes, preso ao karma da mesma consciência limitada. Tanto a prosa filosófica quanto o poema criam conceitos na abordagem de ideias, afetos e impressões, estados de alma, de mundo e sociedade. Se a filosofia os cria pela força coerente dos seus argumentos, o poema o faz, geralmente, por associações semânticas, musicais e imagéticas. Conquanto a primeira convença e imponha a aceitação da realidade (não sem dor, muitas vezes); antididático, o poema trama o sequestro das atenções e surpreende o leitor (ou o ouvinte) para, de repente, entregá-lo a si mesmo, refém, pasmo, sem explicação, ante a descoberta de que algo fundo se lhe modificou a percepção e o sentido da vida.



Muitas vezes a diferença entre prosa e poema não é suficientemente clara, existindo formas intermediárias. Cada vez mais, enquanto a prosa tende a poetizar-se combinando ideias com alegorias, símbolos, evocações da memória e do instinto etc., os poemas se aproximam da prosa literária pela renúncia aos esquemas métricos, rítmicos, estróficos, dando maior enfoque à realidade sentida e descrita artisticamente. Assim como muitos romances podem ser tidos como poemas expandidos ou, ao inverso, um poema como um romance condensado, também muitas máximas da filosofia, sínteses de grande valor poético, poderiam ser facilmente tomadas como versos, como poemas.



Mas filosofia e poema são coisas diferentes? A primeira diferença é um critério externo, formal e fácil de reconhecer: reside na presença ou não do verso. O poema é uma poesia em versos ou, pelo menos, em um só; ao passo que a filosofia poética é uma dissertação racional, marcadamente desenvolvida pelo caráter demonstrativo, pelo rigor e coerência lógico-semântica. Se, no entanto, o critério for interno, a diferença corresponderá à análise da intenção do discurso, seja na direção de uma finalidade “comprobatória” – filosofia –, ou no caminho de tornar a estrutura sintática um apelo à função “sugestiva” – poema.



Nem toda prosa é filosófica e nem toda filosofia é poética. A respeito, pode-se falar em filosofia poética, como uma prosa teórica inspirada no estilo literário, utilizando dos sentimentos e da criatividade para expressar ideias. Também é possível falar em poesia ou, mais adequadamente, em poemas filosóficos, ou seja, estruturas poéticas que hipoteticamente despertariam o ânimo para consequentes reflexões filosóficas. Algo diferente deste último – se não raro, improvável –, seria imaginar um poema não com adjetivação filosófica, mas com a substancialidade própria da filosofia; uma “filosofia-em-estrofes” de natureza dissertativa, uma grande e complexa sequência estética de silogismos, cujas primeiras conclusões transformar-se-iam em novas premissas, verso a verso, reunindo o máximo da síntese poética e da objetividade lógica.



Não faço filosofia-em-estrofes. Escrever poemas filosóficos – propósito de muitos versos meus – é de tal competência que exige do poeta sua máxima capacidade de exprimir ideias por meio de palavras emotivas e sensitivas (embora haja quem prefira as duras e dolorosas, não mais fortes). É preciso alguma sabedoria para identificar e distinguir as emoções, os comportamentos e as ideias comuns existentes entre os indivíduos, as classes e as diferentes culturas de uma época e região, sem o quê não se poderia fazer-se entender com uma linguagem adequada ao estímulo irresistível que desafia e envolve o leitor, prazerosamente ou não. Naturalmente, aquém da sociedade, cada alma tem seus próprios labirintos a serem percorridos, e até os valores mais universais devem ser bem contextualizados.



Eu morro em cada poema, em cada artigo, livro, aula ou diálogo em que sou verdadeiramente capaz de produzir um novo significado de amor. Aprendi com a poesia que se há amor, há verdades suficientes. Sinto que partes de mim morrem cada vez que eu renasço inteiro. É como se minha existência, por alguns microinstantes, finalmente alcançasse todo o seu objetivo, a razão de tudo, e de alguma forma me provocasse aquela silenciosa gratidão de olhar a alma de todos os seres, desnecessitando palavras. Nesse momento, o ambiente mais próximo do meu corpo vira palco, e as intenções queimam. Morrer é-me o propósito da vida, renascer é o da morte. Só o amor permanece.



De todas, a poesia mais tocante é a que emudece, a que excede em significados para além dos versos, e transborda-se numa incompreensível sensação que ao mesmo tempo junta a coragem heroica de vencer a si mesmo, como também os maus e covardes, não obstante impõe com ternura a humildade capaz do autossacrifício pelos outros, quando nada podem. No grande poema, a palavra grita sem som, terminada a frase. É quando a vida faz sentido, sem explicação.



O bom poema filosófico é um bem moral supremo. Conquanto a filosofia reflexivamente queira a discussão, com análises quase intermináveis, o poema deseja o silêncio de quem já entendeu. Deseja a maior, e intraduzível, compreensão humana: a vivência íntima. Com menos palavras, maior síntese e ajuste, a estrutura poética é mais sábia, e fala o suficiente para calar o desejo de comentários. Qual filósofo foi alguma vez poeta assim? Perguntemos a Nietzsche.



O que se passa em minha mente e em meu corpo, quando escrevo, é mais rápido que a minha percepção. Isso arde de ansiedades minha inteligência enquanto não acho as palavras exatas. E porque em mim as ideias escritas nascem estéticas, e com ritmo musical, assim, sou obrigado a refazer todo um parágrafo ou um poema inteiro só para encaixar a sonoridade fonética aos desejos de uma palavra qualquer que insiste em ser a origem de tudo, por vezes no meio da oração, deixando-me com a agrura de resolver questões gramaticais, métricas ou semânticas. Alegre, aflito e descontente, custa-me acamar-me. Às vezes é um demônio tão maior do que eu, e de tal grandeza belo e perfeito, que indômito, ao escrever, meus sentimentos são desencontrados entre o prazer de sofrer em mim as dores e alegrias dos dramas humanos, através da poesia, e a necessidade de dar paz e desobrigar esse espírito que me domina. Enfim, quando a poesia fisicamente me vence – não sem cansaço e involuntária submissão –, ela se me desincorpora, e o poema já não me pertence mais. Porém, se depois o reconheço ainda como meu, só da minha subjetividade, então ele não alcançou um mínimo valor universal, e deve ser jogado fora.



Dizendo assim, quem assume a função de autor? Não sem imodéstia, deslumbro-me como se deslumbrasse em outros o verdadeiro senhor das necessidades: a vida nos empresta o corpo e a consciência para experimentar a co-individualidade e reconhecer nos outros a íntima sensação de existirmos juntos. É mesmo estranho sentir orgulho e alegria de perder a vaidade do próprio orgulho. É como se Deus, ou qualquer outra imprecisa definição do amor, não fosse mais do que a visão face a face da vida consigo mesma no rosto de outrem. Eu, para alcançar esse enorme sentimento de humanidade, preciso perdê-lo como meu e resgatá-lo em alguém que por desventura ainda não o conheceu em si próprio. Salvo enganos, de mim muito pouco compreendi, restando os outros. É neles que encontro alguma honesta possibilidade de conhecimento humano. Além disso, nada.



Porque sou poeta e filósofo – e não digo o primeiro em importância, mas pelo grau de simplicidade que a poesia aparenta ser a mais – devo dizer que um poema não é espiritualmente mais fácil que uma tese, lendo ou escrevendo. Isto é, um poema filosófico, como Amor de Filósofo, À Metade do meu Caminho, Problemas? ou Identidade, para citar os meus, tomando por axiomáticas minhas verdades, exige-me uma profunda coerência intelectual, ainda maior que a emotiva, coordenando conceitos em favor da intimidade-ângulo da ideia defendida, questionando e antevendo objeções, provocando e conduzindo o leitor ao centro de gravidade filosófica, onde pode se dar, quem sabe, a vivência da resposta. Poemas-problemas em que se instauram enigmas semânticos e se justificam aptidões estilísticas de sinestesias, metáforas adormecidas no cotidiano, neologismos, mitos... e outros. Tudo rigorosamente unificado por um pensamento filosófico intencional, que não se perde ou se deixa às facilidades meramente estéticas e populistas de consumo. Tal poesia não é simples rima de brincadeira de crianças, não é jingle, comercial de TV ou qualquer letra de música. Um bom escrito é como um bom leitor. Não é aumentando a erudição que se eleva o domínio intuitivo da sensibilidade, é um profundo interesse cultivado pela vida, pelo sagrado, pelos conflitos do mundo e da própria existência. A grandeza de um poema filosófico é, em meu entender, tão mais verdadeira e elevada quanto mais ele nos desperta compaixão pela humanidade – a sublime lucidez –, seja pelas belezas da ternura ou pela força da indignação. Problemas cuja resposta de um desenvolve a cultura de todos.



Após várias tentativas fracassadas, de análise e reflexão, para condensar meus pensamentos num todo assim concebido, compreendi que nunca conseguiria isso, e que as melhores coisas que eu poderia escrever neste pequeno ensaio permaneceriam sempre revistas. Escrevi meu primeiro caderno de poesias aos quinze anos, mas decidi rasgar a maioria delas. Dos meus trabalhos posteriores na verdade poucos até hoje se salvaram. De tudo guardo uma conclusão pessoal: gostaria realmente de ter escrito bons poemas, de ter nascido literato, pudesse, mas quando escrevo poesia penso filosoficamente, e quando me esforço para filosofar com extremo rigor, sou incorrigivelmente poético. Dá-me muito trabalho ser eu mesmo.

Recomendamos:



[1]GOYA, Will (2008). Revista Fragmentos de Cultura. UCG, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 761-772, set./out. Texto aqui revisto.

[2] Esta frase faz parte do poema de Gertrude Stein, "Sacred Emily", de 1913. In: STEIN, Gertrude (2008). Writings, 1903–1932. Library of America, University of Michigan.

[3] ROSA, João Guimarães (1983). Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Abril Cultural, p. 9.

Fonte: http://www.willgoya.com/

segunda-feira, junho 04, 2012


Para que servem os Partidos Políticos?



Os Partidos Políticos modernos estruturam-se sob dois princípios internos: enquanto organizações voltadas essencialmente para a indicação e a ocupação de cargos no Estado e/ou como partidos ideológicos. No primeiro caso, como define Weber, seu objetivo “será simplesmente o de, através de eleições, colocar o seu dirigente no cargo de direção, para que ele possa transferir os seus seguidores, isto é, os funcionários e os propagandistas do partido para a máquina do Estado”.

Isto é muito claro, principalmente nos países onde a autoridade governamental centra-se na figura do presidente. Basta considerar a quantidade de cargos do primeiro e demais escalões da administração direta, os cargos em fundações, estatais e outras instituições vinculadas ao aparato de Estado. Pense em sua cidade: quantos cargos o prefeito os vereadores têm em mãos para distribuir entre os seguidores e os aliados de primeira e última hora – sem falar no nepotismo que grassa à esquerda e à direita.

Imagine que você é indicado para dirigir uma secretaria municipal, estadual, um ministério ou mesmo a reitoria de uma Universidade Pública. Quantos cargos de confiança você têm para distribuir?

O outro tipo de partido, o partido ideológico, como a social-democracia do século XIX e início deste século, os partidos comunistas, o partido nazista, etc., são facilmente caracterizados e identificados pela postura política-ideológica diante da realidade vigente. Em geral, são partidos que defendem um projeto político-social de longo alcance, uma alternativa ao sistema capitalista ou a defesa intransigente deste e, em certos casos, têm no horizonte a utopia de uma nova sociedade.

Contudo, não há uma separação rígida entre os dois tipos de partidos. A regra geral é que eles se complementem. O partido ideológico, ao aceitar as regras do jogo determinadas pelas instituições burguesas, como a participação em eleições e no parlamento, também objetiva ocupar cargos no aparato de Estado. Este partido mantêm uma retórica ideológica – socialista ou comunista – mas, na realidade, também disputa o butim e a possibilidade de usufruir dos recursos estatais.

Não esqueçamos os partidos ideológicos puros, isto é, os que não se submetem à atividade eleitoral-parlamentar, caracterizando-a como secundária. Historicamente isto só se mostrou possível à medida que tais partidos se mantenham eleitoralmente insignificantes. Tão logo eles conquistem postos no executivo ou no legislativo viverão o dilema apontado por Przeworski: da integração à ordem burguesa que criticam. Manterão a retórica revolucionária, é verdade. Mas, a prática mostrará o oposto: o apego aos cargos e às benesses advindas da ocupação do Estado. Os que se recusam terminantemente em disputar o jogo eleitoral vivem o paradoxo de representarem a si mesmos. Em geral, transformam-se em seitas messiânicas que autojustificam a própria existência.

Os Partidos Políticos diferenciam-se de outras organizações sociais (como os sindicatos, as associações de moradores, etc.) por um simples motivo: arrogam-se o direito de representação dos interesses universais (diferentemente das instituições que defendem interesses corporativos e/ou particularistas) e buscam deliberadamente a conquista e o exercício do poder político. Um partido político que não se coloque este objetivo é anômalo.

Exercer o poder político significa dispor dos recursos disponíveis para a direção e controle da sociedade, de acordo com os objetivos traçados e os interesses econômicos predominantes que influem e condicionam a estrutura partidária.

Além da busca e preservação do poder, os partidos caracterizam-se por se constituírem enquanto organizações cuja existência é geralmente posterior à dos seus dirigentes; pelo fato de estabelecerem uma rede de relações entre os organismos locais, regionais e nacional; e, pela constante preocupação em angariar o apoio popular, seja pela via eleitoral ou de outra forma.

Evidentemente, à maneira do Estado, os partidos precisam aparecer para a massa dos eleitores enquanto defensores dos interesses genéricos e indistintos da comunidade. Nenhum partido cometerá a loucura de afirmar-se defensor dos interesses econômicos dos banqueiros, latifundiários e grupos dominantes. Seus programas políticos defendem, genericamente, o bem comum: saúde, educação, emprego, segurança, etc.

Falam em nome do povo e dos trabalhadores. O discurso se sobrepõe à realidade, à sua história e de suas lideranças; escamoteiam até mesmo sua composição de classe social; adotam nomes que anunciam promessas que nunca serão cumpridas e as siglas escondem seus reais interesses. Em seu propósito de convencer os eleitores e conquistar a legitimidade, utilizam de todos os procedimentos e recursos: fazem planos econômicos à véspera das eleições, mudam a legislação eleitoral de forma casuística, compram o voto, pagam cabos eleitorais, gastam milhões em campanha, disputam os melhores publicitários, os mais capazes em iludir a todos através dos recursos midiáticos.

Os partidos políticos arrogam-se ainda o privilégio de serem os mais importantes, senão os únicos, portadores da ação política coletiva. Fora deles, a política parece não existir. Todos somos obrigados a canalizar nossas expectativas para a instituição partidária – principalmente em épocas eleitorais. Abdicamos da ação política direta e da possibilidade de construção de novos tipos de organizações associativas em nome da representação – concedemos nosso poder de decisão a uma organização totalmente fora do nosso controle ou, o pior, confundimos Política com política partidária.

Por outro lado, vendem-nos a ilusão de que o poder reside essencialmente no ato de votar e não nos interesses e no poder econômico subjacentes ao processo eleitoral e aos vínculos obscuros no pós-eleição. O ilusionismo das campanhas eleitorais nos induzem à aceitação das promessas mirabolantes e das realidades virtuais, ampliando-se assim o fosso entre a realidade objetiva do eleitor-indivíduo e as instituições e políticos que se propõem a representá-lo.

Felizmente, este indivíduo-eleitor tem a capacidade da apreciação e não lhe é difícil verificar que o discurso não corresponde à prática. Infelizmente, já será tarde: o candidato eleito já se entronizou em seu posto de representação, no qual reinará absoluto, pelo menos até a próxima eleição.

Desacreditados e suportados como o mal menor, os partidos e os políticos sobrevivem. Num regime democrático sua função primordial é garantir a seleção de dirigentes, a elite – ou a contra-elite – que governará os nossos destinos. Uns ou outros serão menos ou mais democráticos. Em qualquer caso, nos reservarão o papel de coadjuvantes.

A democracia, mesmo que limitada e adjetivada, favorece o desvendamento das contradições e dos antagonismos escondidos sob a retórica da ordem e do bem comum. Na democracia, os partidos e os políticos são obrigados a se exporem, a dizerem minimamente pelo e para que vieram, condição essencial para garantir o suporte popular em épocas eleitorais.

Também devemos considerar que eles desenvolvem mecanismos de dissimulação. De qualquer forma, é preferível a existência os partidos e das suas disputas – ainda que mesquinhas – à ditadura dos generais de plantão ou do partido único portador da verdade absoluta.



    Referências

    PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e Social-democracia. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

    WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionalismo e da natureza dos partidos. Petrópolis, Vozes, 1993.