Pequeno Ensaio Literário sobre
Poemas Filosóficos[1]
Will Goya
[Gilles
Deleuze]
O
mundo está escrito, ou por escrever. Enquanto pensamos, somos todos
prisioneiros da linguagem, e apenas livres para nos expressar através dela.
Além disso, nem um só pensamento, nada pode ser dito. Até a morte, a recusa...
e o silêncio proposital nos instruem, comunicam suas intenções. Entretanto, se
há quem expresse apenas seu dogma, seu eu e sua solidão, há quem deseje o
diálogo, todas as formas de “escuta”, de respeito e proximidade. Quem prefere a
escrita, a literatura, faz da liberdade uma palavra, um jogo de entendimentos
entre signos e sintaxes, e está obrigado a nela pôr um significado para o
leitor através de muitas outras palavras; obrigado a encontrar na gramática, na
semântica, em toda a cultura, o que só os cultos entenderão. A palavra escrita
só encontra sentido quando se casa consigo mesma. O mundo não tem sentido,
apenas existe. Uma maçã é 1 maçã, sem dúvida! Cada mordida é um novo saber.
Mas, se “uma rosa é uma rosa é uma rosa...”[2] – como dizia Gertrude Stein –,
então o que seria o conceito universal de “a maçã”? Ou, se a palavra se refere à
coisa, a quais exatos objetos se referem os termos “sarcasmo”, “filantropia”,
ou o verbo “estabelecer”?
Alguns
pensam: “é fácil falar de mim, difícil é ser eu”. Ledo engano, para-choque de
caminhão. Quem teria a facilidade de Vinícius de Morais para saber descrever
uma das experiências mais básicas e conhecidas de cada um de nós, como revela o
título do seu famoso poema “Da Solidão”? Quem saberia falar a verdade sobre as
próprias mentiras? Sobre contradições, sutilezas, fragmentos, memórias de
cheiro, fantasias... sobre os desejos ocultos do corpo e outros tantos
mistérios de si mesmo? Depois, parecem ser naturais termos ideias e emoções
confusas, distantes e mal combinadas entre o que pensamos, o que sentimos e o
que de fato somos e fazemos de nós mesmos. Haveria sensibilidade e
conhecimentos de linguagem suficientes? As palavras das delicadezas, das coisas
e movimentos, os termos das grandes aprendizagens... enfim, tudo o que é
pronunciado na vida só é compreendido se explicadas suas complexas e belas estruturas
linguísticas. Um poema não existe apenas, tem sentido. É uma competência. Não
é, pois, correto dizer que um olhar sempre vale mais que mil palavras; dizer
que as palavras são pobres e a boca pode menos que os olhos. Acreditar nisso é
nunca ter lido, por exemplo, Paul Valéry, André Gide, José Saramago ou Kalil
Gibran. É também só “ter ouvido falar” de filósofos como Aldous Huxley,
Bachelard, Sartre ou Camus. Não haveria o nosso mundo conhecido, não houvesse
literatura. Em que pese a isso, sempre haverá mais coisas que palavras, mais
mistérios e mais desentendimentos. Dizer que as palavras são inúteis quando o
olhar não diz nada poria fim ao imenso valor do diálogo. Em geral, quanto maior
o silêncio, mais a ansiedade se acumula de interpretações e perigos; quanto
mais firmes verdades o olhar carrega menos se escutam as palavras contrárias,
calando a relação. Não raramente, problemas de diálogo se resolvem com mais
diálogo. Se for verdade muitas vezes que um olhar diz mais que mil palavras,
igualmente, que se aprenda com as palavras de Guimarães Rosa a se ter outros
mil olhares sobre a vida e o mundo, e saber ler com os olhos dos outros. Quem
saberia ver – além de meras terras secas – as belezas, o espírito e a tragédia
do Grande Sertão brasileiro sem as palavras de Rosa? Afinal, “o sertão está em
toda parte...”[3]. Guimarães é exemplo vivo de um escritor cujas palavras têm o
poder de dar vida a um ser, a um drama interior comum a todos nós, na medida em
que as reflexões do personagem são capazes de dar ao leitor um novo olhar.
Parece-me impossível ler Guimarães Rosa, com um interesse de alma, e em nada se
modificar depois da leitura. As palavras também dizem mais que mil olhares.
Quem souber todas as letras, fonemas, propósitos e pontuações, que veja.
Quando
filosofia é literatura, a verdade é a trama da palavra, toda sua força, seu
impacto, seu temor. Logos, a verdade, e tudo o que se diz ou se quer dizer
reclamam intimidades vivas com a língua. É história. Verdade é um diálogo
inacabado. Se a palavra está definitivamente posta, impressa, sem conserto,
ainda assim nada está perdido. Sempre haveremos de dialogar com o texto. Nem o
próprio autor se pertence escrito, exclusivamente. Sua língua é de todos. Não
há autor sem coautoria; texto sem contexto. Muitas vezes, quando nos falta o
léxico, é a palavra não-dita, articulada e negada, que mais bem preenche o
sentido, o enunciado da frase. São os gestos e termos da vida.
Propositadamente, e não raro, a literatura é assim. Por que a verdade haveria
de ser diferente na filosofia se a vida é a mesma? Sem dúvida, a literatura
decifra mais ideias, concebe mais realidades do que a filosofia é capaz, pois
somente a arte consegue ser coerente com a vida sem deixar de ser
contraditória. O que é verdade literal nunca é literatura.
Então,
onde está o sentido de verdade da palavra escrita por outra pessoa? Em nenhum
lugar, se não houver leitor. Não se faz uma prece repetindo a oração. O poeta
sente seus pensamentos, e quando deseja pensar em dizê-los, sonha com palavras
escritas. Embora as palavras sejam comuns a todos, cada um as mastiga com um
sabor próprio. Como se pode alimentar de poesia a palavra de quem lê, se os
significados da sensibilidade só foram escritos graças à estranha força da
intimidade única de outra experiência pessoal? Escrever um poema é tirar da
boca a fome de quem se admira das coisas absolutamente comuns, das emoções que
atravessam como um rio profundo um dia simples, completamente natural, mexendo
os detalhes da existência... e depois de tudo o que se acumula, de toda a
solidão que não pode ser dita, angústia ou felicidade, deixar o leitor sozinho
diante do poema. Poetas e filósofos procuram nos livros o que encontram nas
pessoas, mas com uma virtude bastante incomum: sabem que grandes almas podem
estar em vários lugares ao mesmo tempo, em outras épocas, e habitar diferentes
corpos, diferentes livros. Estamos mal acostumados a pensar que encontramos
alguém só porque lhe vemos a pele com recheios. Um livro é um corpo habitado
por uma alma, ou mais; é um corpo tatuado de pensamentos. Há os que vivem cada
palavra que dizem, mas preferem se relacionar por escrito; e assim o que têm de
mais íntimo, de mais profundo e verdadeiro, talvez ainda viva e dialogue por
séculos, com milhares de pessoas, uma a uma.
A
literatura será filosofia, penso, se alguma mágica competência, talento
reconhecível, mas de todo inexplicável, levar o leitor a transformar seus
vocabulários em conceito, palavras em ideias; a condensar intuições, vivências
abstratas, instintos, desejos e emoções contidos no texto para identificar,
descrever e, quem sabe até explicar a realidade das experiências dramáticas da
vida. Isso, para dar sentido, movimento e resolução, chegada a hora em que o
leitor, perante suas escolhas, seja ele próprio o autor da resposta: “o que
fazer?” A arte não imita a vida, é em si mesma uma das mais belas formas de
experimentá-la. Não copia o que acontece ou o que poderia ter acontecido, mas
ensina a viver e amadurecer em perspectivas desconhecidamente alheias. Quando alguém
se abandona aos sentimentos da leitura – romance, conto, crônica ou poema –
pelas dificuldades que encerram ou que constituem a luta emocional de assumir
por um momento como seus os sentimentos e as opiniões dos outros, personagens e
autores, esse alguém, já não mais referência para si mesmo, e tendo eleito um
não-eu para estar no mundo e conduzir seus sonhos, além de superar o egoísmo
moral, agiganta-se ao tornar-se coautor intelectual da imaginação, fazendo de
seu não-eu um eu melhor. Não há um texto literário cujo fim não seja o mesmo: o
leitor. Filosoficamente, entender o outro é pensar por si próprio e reconhecer
as diferenças. É fazer ser outro depois da leitura; fazer da leitura uma
vivência dramaticamente real, e de cada livro uma nova vida. Essa é a ponte
mágica entre o que cada um é capaz de ler e a universalidade escrita da
experiência filosófica e literária, e pode levar a filosofia e a literatura a,
razão do que têm em comum, por isso, se confundirem.
Sim!
A literatura pode ser, entrelinhas, filosofia. Entrelinhas são pensamentos,
interpretações de quem lê. Mas, de qual autoria? A quem pertence,
originalmente, a ideia subentendida? Quanto maior for a cultura literária,
menos títulos e mais autorias; quanto maior a inteligência filosófica, mais
humildade e diálogos. O que sei é que o espaço “entrelinhas”, de uma boa
literatura, não é o que separa, mas o lugar onde o leitor pode se encontrar com
os dramas de sua época, e com os próprios, com as afinidades e dessemelhanças
para com o escritor (mesmo seja este os dois) discutindo autorias... Há
críticos que dizem nada poder se falar DO texto que não esteja NO texto, que
não há entrelinhas. Teóricos da objetividade, fiéis ao método e adeptos das
análises intrínsecas, podem e devem garantir um conhecimento rigoroso – o que
não é pouco. Mas, se a tradução exata de uma língua para outra, palavra por
palavra, quase sempre trai a verdadeira mensagem, aquilo que não está
diretamente expresso num texto, num tempo e lugar, deve ser cuidadosamente
lido, transcrito e versado para sua nova circunstância, com naturais perdas e
vantagens. Assim, quando um leitor substitui a unidade da palavra pelo conceito
do léxico, ele descobre a ideia escondida, tal se como a literatura fosse um
mapa, a verdade um tesouro e, entre linhas, talvez, o legado de alguma
filosofia. Entre linhas existe a herança cultural da obra e o leitor,
coautores. Lugar em que não se caminha com segurança, talvez um dos mais
honestos momentos escritos da vida em que a literatura e a filosofia deixam à
imaginação, aos perigos e delícias da liberdade. Quem saiba fazer literatura e
filosofia ao mesmo tempo há de tentar ensinar verdades ocultando-as com
palavras, atrás dos símbolos, substituindo a pedagogia da gramática pelos jogos
de linguagem, a fim de que o leitor as encontre em seu próprio pensamento,
reagindo. A lógica pode menos do que a realidade afirma.
Os
clássicos foram tesouros da humanidade revelados. Os grandes espíritos dialogam
com o futuro, ocultando-se no porvir uma parte essencial de suas ideias,
conceitos da vida muito bem refletidos e elaborados, com justificativas
cuidadosamente analisadas e postas em personagens, “falas” e “imagens”,
cenários da imaginação. Como não perceber que elas adquirem um sentido antes
filosoficamente preparado? Esses gigantes não só conhecem a humanidade como
também a inventam, criam novos valores, decifram realidades humanas, abrem ou
preparam caminhos na ética, na ontologia, na política, nas dialéticas da
racionalidade e em outros. Após ler Água Viva, Fausto, O Alienista, A
Metamorfose, o Livro do Desassossego, é de todo impossível negar a existência
de uma autêntica filosofia de Clarice Lispector, de Goethe, de Machado de
Assis, de Kafka e de Fernando Pessoa.
Há
quem diga que não se faz filosofia em versos, nem o inverso; e que a poesia não
é verdadeira, apenas bela (ou não). Prosa. Junto à poesia e à filosofia, no
interior do poema e da tese, há fronteiras que precisam muitas vezes ser
cruzadas para se vencer a crise generalizada dos enunciados e das narrativas,
ou nada se descobrirá das belas tensões em que se constroem os discursos, as
verdades e o sentido.
Um
texto filosófico se dirige ao leitor para convencê-lo, persuadi-lo a filosofar,
a criar ideias próprias. A ideia, ao servir-se de palavras para se exprimir,
contorna, define e traduz um significado, e o nomina “conceito”. Quando desejo,
estou subsidiariamente a pensar. Capacidade de escolha em foco, carregada de
apetites, apelos físicos, psicológicos ou morais. O impulso de natureza emotiva
ou desejante é ele próprio um pensamento deliberado, que conduz a atividade
mental para dar sentido a um objeto como ideia. Embora nem toda ideia seja
emotiva, quase todas as emoções são pensamentos intencionais, com a única
exceção, talvez, dos sentimentos místicos sem desejos, como a paz da meditação
– metafísica do inefável. Dessa forma, considerando que a raiz das nossas
emoções é feita de ideias, isto é, que significam algo para nós, nada mais
lúcido seja a filosofia bússola das nossas emoções, ensinando a sentir
inteligentemente. Porque toda grande obra literária é uma profunda aula sobre a
força dos desejos e as consequências existenciais das nossas escolhas, nada
mais verdadeiro concluir que um clássico da literatura nos provoque
estudar pelo menos um clássico da filosofia. Se a filosofia emancipa o
pensamento, não raro a literatura antecipa novas ideias, na fonte viva da
criação. Entre elas, qual é a primeira, a mais importante ou mais original?
Sinceramente, eu próprio não calculo anterioridades ou metafísicas da hipótese.
Quando elas resolvem se casar ninguém mais pode definir até onde, como e quando
uma existe sem a outra.
Sei
que literatura e filosofia são coisas absolutamente distintas, no modo
cartesiano, pois na literatura pode-se inventar e na filosofia tudo exige
fundamentos para existir. Mas nem tudo é Descartes. Também é verdade que Platão
faz Sócrates refutar o seu detrator, o grande Aristófanes, e com ele toda a
tradição grega, pondo fim à antiga literatura, à retórica, à poética, ao mito
como base de explicação, propondo uma nova forma de pensar, falar e agir.
Todavia, como negar, por exemplo, que o Fédon e O Banquete possuem em seus
argumentos o estilo e a mais bela linguagem poética de sua época? A filosofia
não negou a literatura, incorporou-a.
Se,
de um lado a literatura é um discurso feito para despertar intensos
sentimentos, a filosofia é o estudo da linguagem do pensamento, e mais. A
filosofia deve subordinar os sentimentos a um raciocínio, mas seria a emoção ou
a razão, a literatura ou a filosofia, ou ambos, o que melhor capta o conceito
de uma ideia? A resposta é individual, porque a vida também o é. Ninguém há de
saber, nem de sentir pelo outro. No entanto, todo esse esforço de comunicar ao
leitor a perspectiva de uma nova ideia sobre o mundo é pura linguagem. Muito
arquitetural, a linguagem é uma inadaptação à realidade do instantâneo, do
absolutamente simples e ingênuo. Um ligeiro “oi!” não está isento de
significações secundárias, de interpretação e contextualização linguística, de
deciframento existencial e filosófico. Análise feita, descoberta a
intencionalidade oculta, pode querer dizer: “eu me sinto muito só, quero sua
companhia, pois não sei mais o que é a minha vida... Preciso da sua ajuda!”
Posso subverter a sintaxe, em aparente anarquia, reinventar o texto, o estilo,
a estética e outros. Posso até reinventar a literatura...
Mas
que filosofia honestamente conseguiria tocar a realidade inteira de um conceito
vital com o uso exclusivo da razão pura? A filosofia não tem sequer essa
pretensão, diria o filósofo alemão Kant. Vivesse mais dois séculos de uma
civilização iluminista, ele teria percebido que a Razão aproximou-se do seu
limite e entrou em crise. E vendo o trágico diagnóstico da perda da
possibilidade de um compromisso possível de nossas orientações fundamentais
para a vida, entenderia que a autoridade da razão deve ser recuperada na
historicidade do sentido, isto é, que a tarefa de autocompreensão só tem êxito
quando o homem se vê culturalmente, como participante e intérprete da tradição
histórica. Filosofia é linguagem, é língua, é história. Se eu quiser
compreender um pensamento, um texto, ou a universalidade da experiência humana,
devo aceitar a hermenêutica como filosofia prática. A hermenêutica possibilita
reconstituir uma comunicação confusa; ela atinge, fere e revela os limites que
separam a razão metódica dos dramas da vida. Conquanto a filosofia analítica
busque na linguagem do texto a unidade do significado, a hermenêutica
filosófica trabalha com o sentido histórico; e ambas estão inseparavelmente
certas, porque ao mesmo tempo em que a linguagem “quer dizer”, isto é, tem
função semântica, ela também “é”, ou seja, é uma organização com concretude
própria. Se algo puder ser compreendido será pela linguagem.
Logo,
não só é possível uma filosofia poética, uma razão interessada e emotiva, como
também é necessária. Mas, seria igualmente possível a existência de um poema
filosófico? O poema não pensa a realidade como se de um lado houvessem palavras
intencionadas e do outro o mundo real a que elas se referem, em nome da
verdade. A palavra poética não é uma cópia sonora, desenhada, do real. O poema
é a realidade mesma com todas as nossas faculdades psíquicas e espirituais, e
até com nossos corpos. A arte da poesia não representa nada, ela é como uma
canção que se define antes pela emoção da voz do que pela letra, seja qual for.
O significado de um poema está em saber viver, amar e sofrer quaisquer dramas
com aquela profundidade que só a beleza alcança. Que ninguém ouse dizer “poemas
são só palavras!”. Porque a indiferença descolore a vida, a poesia salva o
mundo.
O
conhecimento agencia do interior a função da vida: uma ideia só existe para
aquele que a vivencia. Uma ideia só existe como um fato. A vida é a base para
pensar, logo, o conhecer a ela se subordina. Concordar ou discordar já é um
engajamento, um compromisso, uma transformação e não um princípio teórico puro.
Enquanto eu próprio não experimentar o sentido que entrego à notícia de que 2+2
= 4, isto pra mim ainda não será um fato, será apenas um desenho ou mancha
sobre o papel, sem valor, tal como um cão que ao livro só fareja em busca de
comida, mesmo que lá houvesse escrito onde se encontra enterrado o osso. O
conceito de número é um “número vivido”. Quando significativos, cada palavra,
vírgula ou verso, são, de fato, uma respiração. O poema é um fato, pura realidade.
Logo, o poema não dá sentido ao mundo, ele é uma das expressões significativas
do mundo. Quem cria novos significados para o amor através da poesia eleva o
que se pensava e se sentia a respeito e, assim, evolui a pouca ou insuficiente
maneira de antes amar. O grande poeta transfaz a antiga realidade moral criando
um novo valor e conceito ético, quem sabe um comportamento. Faz o que pretende
toda filosofia moral. O melhor da poesia não nos eleva para outro mundo melhor,
antes e simplesmente prova o quanto o mundo – do qual os poetas pertencem –
neles evoluiu.
A
poesia é superior e anterior à lógica. Disse superior, não melhor. Enquanto
houver filosofia, muito há que se discutir, proclamar, defender e negar, porque
injustiças, e afins, sempre existirão. Todavia, não há raciocínio que alcance
as janelas dos sonhos – de uma a outra – por onde todos nós nos unimos ao céu,
morada comum. Se a humanidade não criasse o diálogo e, por meio dele, a
literatura, não teríamos aprendido as racionalidades da filosofia. Desde as
primeiras literaturas, histórias, religiões e fábulas de mitos, foi pela
linguagem poética que a palavra, pouco a pouco, legitimou a realidade do humano
e se tornou propriedade pública, ser do interesse político, do bem e da
verdade. Do Oriente ao Ocidente, a história da inteligência deve à poesia. Além
disso, a matéria da filosofia é a mesma da poesia: o espanto da criação de um
significado, o estranhamento do óbvio. Quando se escreve um novo significado
para existência – seja pela literatura, adornando sentimentos e motivações
vitais para o ser; seja pela filosofia, reinventando conclusões, análises e
perspectivas – aprende-se a transformar impulso em direção, linguagem em
necessidade. Criar é especificar e promover as diferenças entre o antes e o
depois. Aquele que é exatamente o mesmo após ler ou escrever nada fez se não do
tempo a medida do próprio cansaço. Uma vida é pouco se repetitiva, e não haverá
outra vida para quem não souber se recriar, ainda que reencarne mil vezes,
preso ao karma da mesma consciência limitada. Tanto a prosa filosófica quanto o
poema criam conceitos na abordagem de ideias, afetos e impressões, estados de
alma, de mundo e sociedade. Se a filosofia os cria pela força coerente dos seus
argumentos, o poema o faz, geralmente, por associações semânticas, musicais e
imagéticas. Conquanto a primeira convença e imponha a aceitação da realidade
(não sem dor, muitas vezes); antididático, o poema trama o sequestro das
atenções e surpreende o leitor (ou o ouvinte) para, de repente, entregá-lo a si
mesmo, refém, pasmo, sem explicação, ante a descoberta de que algo fundo se lhe
modificou a percepção e o sentido da vida.
Muitas
vezes a diferença entre prosa e poema não é suficientemente clara, existindo
formas intermediárias. Cada vez mais, enquanto a prosa tende a poetizar-se
combinando ideias com alegorias, símbolos, evocações da memória e do instinto
etc., os poemas se aproximam da prosa literária pela renúncia aos esquemas
métricos, rítmicos, estróficos, dando maior enfoque à realidade sentida e
descrita artisticamente. Assim como muitos romances podem ser tidos como poemas
expandidos ou, ao inverso, um poema como um romance condensado, também muitas
máximas da filosofia, sínteses de grande valor poético, poderiam ser facilmente
tomadas como versos, como poemas.
Mas
filosofia e poema são coisas diferentes? A primeira diferença é um critério
externo, formal e fácil de reconhecer: reside na presença ou não do verso. O
poema é uma poesia em versos ou, pelo menos, em um só; ao passo que a filosofia
poética é uma dissertação racional, marcadamente desenvolvida pelo caráter
demonstrativo, pelo rigor e coerência lógico-semântica. Se, no entanto, o
critério for interno, a diferença corresponderá à análise da intenção do
discurso, seja na direção de uma finalidade “comprobatória” – filosofia –, ou
no caminho de tornar a estrutura sintática um apelo à função “sugestiva” –
poema.
Nem
toda prosa é filosófica e nem toda filosofia é poética. A respeito, pode-se
falar em filosofia poética, como uma prosa teórica inspirada no estilo
literário, utilizando dos sentimentos e da criatividade para expressar ideias.
Também é possível falar em poesia ou, mais adequadamente, em poemas
filosóficos, ou seja, estruturas poéticas que hipoteticamente despertariam o
ânimo para consequentes reflexões filosóficas. Algo diferente deste último – se
não raro, improvável –, seria imaginar um poema não com adjetivação filosófica,
mas com a substancialidade própria da filosofia; uma “filosofia-em-estrofes” de
natureza dissertativa, uma grande e complexa sequência estética de silogismos,
cujas primeiras conclusões transformar-se-iam em novas premissas, verso a
verso, reunindo o máximo da síntese poética e da objetividade lógica.
Não
faço filosofia-em-estrofes. Escrever poemas filosóficos – propósito de muitos
versos meus – é de tal competência que exige do poeta sua máxima capacidade de
exprimir ideias por meio de palavras emotivas e sensitivas (embora haja quem
prefira as duras e dolorosas, não mais fortes). É preciso alguma sabedoria para
identificar e distinguir as emoções, os comportamentos e as ideias comuns
existentes entre os indivíduos, as classes e as diferentes culturas de uma
época e região, sem o quê não se poderia fazer-se entender com uma linguagem
adequada ao estímulo irresistível que desafia e envolve o leitor,
prazerosamente ou não. Naturalmente, aquém da sociedade, cada alma tem seus
próprios labirintos a serem percorridos, e até os valores mais universais devem
ser bem contextualizados.
Eu
morro em cada poema, em cada artigo, livro, aula ou diálogo em que sou
verdadeiramente capaz de produzir um novo significado de amor. Aprendi com a
poesia que se há amor, há verdades suficientes. Sinto que partes de mim morrem
cada vez que eu renasço inteiro. É como se minha existência, por alguns
microinstantes, finalmente alcançasse todo o seu objetivo, a razão de tudo, e
de alguma forma me provocasse aquela silenciosa gratidão de olhar a alma de
todos os seres, desnecessitando palavras. Nesse momento, o ambiente mais
próximo do meu corpo vira palco, e as intenções queimam. Morrer é-me o
propósito da vida, renascer é o da morte. Só o amor permanece.
De
todas, a poesia mais tocante é a que emudece, a que excede em significados para
além dos versos, e transborda-se numa incompreensível sensação que ao mesmo
tempo junta a coragem heroica de vencer a si mesmo, como também os maus e
covardes, não obstante impõe com ternura a humildade capaz do autossacrifício
pelos outros, quando nada podem. No grande poema, a palavra grita sem som,
terminada a frase. É quando a vida faz sentido, sem explicação.
O
bom poema filosófico é um bem moral supremo. Conquanto a filosofia
reflexivamente queira a discussão, com análises quase intermináveis, o poema
deseja o silêncio de quem já entendeu. Deseja a maior, e intraduzível,
compreensão humana: a vivência íntima. Com menos palavras, maior síntese e
ajuste, a estrutura poética é mais sábia, e fala o suficiente para calar o
desejo de comentários. Qual filósofo foi alguma vez poeta assim? Perguntemos a
Nietzsche.
O
que se passa em minha mente e em meu corpo, quando escrevo, é mais rápido que a
minha percepção. Isso arde de ansiedades minha inteligência enquanto não acho
as palavras exatas. E porque em mim as ideias escritas nascem estéticas, e com
ritmo musical, assim, sou obrigado a refazer todo um parágrafo ou um poema
inteiro só para encaixar a sonoridade fonética aos desejos de uma palavra
qualquer que insiste em ser a origem de tudo, por vezes no meio da oração,
deixando-me com a agrura de resolver questões gramaticais, métricas ou
semânticas. Alegre, aflito e descontente, custa-me acamar-me. Às vezes é um
demônio tão maior do que eu, e de tal grandeza belo e perfeito, que indômito,
ao escrever, meus sentimentos são desencontrados entre o prazer de sofrer em
mim as dores e alegrias dos dramas humanos, através da poesia, e a necessidade
de dar paz e desobrigar esse espírito que me domina. Enfim, quando a poesia
fisicamente me vence – não sem cansaço e involuntária submissão –, ela se me
desincorpora, e o poema já não me pertence mais. Porém, se depois o reconheço
ainda como meu, só da minha subjetividade, então ele não alcançou um mínimo
valor universal, e deve ser jogado fora.
Dizendo
assim, quem assume a função de autor? Não sem imodéstia, deslumbro-me como se
deslumbrasse em outros o verdadeiro senhor das necessidades: a vida nos
empresta o corpo e a consciência para experimentar a co-individualidade e
reconhecer nos outros a íntima sensação de existirmos juntos. É mesmo estranho
sentir orgulho e alegria de perder a vaidade do próprio orgulho. É como se
Deus, ou qualquer outra imprecisa definição do amor, não fosse mais do que a
visão face a face da vida consigo mesma no rosto de outrem. Eu, para alcançar
esse enorme sentimento de humanidade, preciso perdê-lo como meu e resgatá-lo em
alguém que por desventura ainda não o conheceu em si próprio. Salvo enganos, de
mim muito pouco compreendi, restando os outros. É neles que encontro alguma
honesta possibilidade de conhecimento humano. Além disso, nada.
Porque
sou poeta e filósofo – e não digo o primeiro em importância, mas pelo grau de
simplicidade que a poesia aparenta ser a mais – devo dizer que um poema não é
espiritualmente mais fácil que uma tese, lendo ou escrevendo. Isto é, um poema
filosófico, como Amor de Filósofo, À Metade do meu Caminho, Problemas? ou
Identidade, para citar os meus, tomando por axiomáticas minhas verdades,
exige-me uma profunda coerência intelectual, ainda maior que a emotiva,
coordenando conceitos em favor da intimidade-ângulo da ideia defendida,
questionando e antevendo objeções, provocando e conduzindo o leitor ao centro
de gravidade filosófica, onde pode se dar, quem sabe, a vivência da resposta.
Poemas-problemas em que se instauram enigmas semânticos e se justificam
aptidões estilísticas de sinestesias, metáforas adormecidas no cotidiano,
neologismos, mitos... e outros. Tudo rigorosamente unificado por um pensamento
filosófico intencional, que não se perde ou se deixa às facilidades meramente
estéticas e populistas de consumo. Tal poesia não é simples rima de brincadeira
de crianças, não é jingle, comercial de TV ou qualquer letra de música. Um bom
escrito é como um bom leitor. Não é aumentando a erudição que se eleva o
domínio intuitivo da sensibilidade, é um profundo interesse cultivado pela
vida, pelo sagrado, pelos conflitos do mundo e da própria existência. A
grandeza de um poema filosófico é, em meu entender, tão mais verdadeira e
elevada quanto mais ele nos desperta compaixão pela humanidade – a sublime
lucidez –, seja pelas belezas da ternura ou pela força da indignação. Problemas
cuja resposta de um desenvolve a cultura de todos.
Após
várias tentativas fracassadas, de análise e reflexão, para condensar meus
pensamentos num todo assim concebido, compreendi que nunca conseguiria isso, e
que as melhores coisas que eu poderia escrever neste pequeno ensaio
permaneceriam sempre revistas. Escrevi meu primeiro caderno de poesias aos
quinze anos, mas decidi rasgar a maioria delas. Dos meus trabalhos posteriores
na verdade poucos até hoje se salvaram. De tudo guardo uma conclusão pessoal:
gostaria realmente de ter escrito bons poemas, de ter nascido literato,
pudesse, mas quando escrevo poesia penso filosoficamente, e quando me esforço
para filosofar com extremo rigor, sou incorrigivelmente poético. Dá-me muito
trabalho ser eu mesmo.
Recomendamos:
[1]GOYA,
Will (2008). Revista Fragmentos de Cultura. UCG,
Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 761-772, set./out. Texto aqui revisto.
[2]
Esta frase faz parte do poema de Gertrude Stein, "Sacred Emily", de
1913. In: STEIN, Gertrude (2008). Writings, 1903–1932.
Library of America, University of Michigan.
[3]
ROSA, João Guimarães (1983). Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Abril Cultural,
p. 9.
Fonte: http://www.willgoya.com/